O uso político do relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no qual as polícias do Rio de Janeiro atribuem o crescimento da facção criminosa Comando Vermelho à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF ) de limitar operações em favelas, gerou um mal estar entre o ministro Edson Fachin e os conselheiros responsáveis pelo documento.
O objetivo do grupo de trabalho montando no CNJ era ouvir os principais atores de segurança pública sobre os efeitos da ação que corre no Supremo Tribunal Federal. O PSB foi à Corte Suprema alegar que o cenário de segurança pública no Rio era incompatível com a Constituição. Fachin, então, determinou que operações policiais em comunidades só poderiam ser realizadas em “hipóteses absolutamente excepcionais”. Se soprarmos a espuma da exploração política, podemos dizer que o relatório do CNJ é tecnicamente isento e permite chegar a algumas conclusões (e aqui entra a opinião do blog e não do CNJ).
A decisão do Supremo não pode ser jogada no lixo, mas precisa ser recalibrada
Pela primeira vez o Estrado brasileiro decidiu enfrentar uma barbárie. Se a polícia entra no Leblon atirando e mata o filho da dona Maria, que não estava em confronto, essa morte é considerada um escândalo, porque se trata de uma situação excepcional. Mas se a mesma polícia entra na favela e mata o filho de Dona Maria, que estava indo para escola, isso é tratado como “efeito colateral” do enfrentamento ao crime. Não é tratado pela sociedade como escândalo, porque não é uma situação excepcional. Virou rotina.
A boa intenção da decisão do Fachin, no entanto, não significa que ela não precisa de ajustes. Tanto o Ministério Público, quando a Polícia Civil, quanto a Polícia Militar reclamam que a decisão deixa margem para subjetividade, o que é muito ruim para uma medida judicial. Afinal, o que são “hipóteses absolutamente excepcionais” que permitem a ação da polícia?
Voltamos ao primeiro exemplo para explicar o problema da imprecisão da decisão de Fachin. Dona Maria mora num prédio no Leblon em que seus vizinhos são desembargadores, militares, jornalistas e professores universitários. Um dia ela chega de carro e não pode entrar na garagem porque bandidos armados estão erguendo barricadas. Ela liga para a polícia e será imediatamente atendida, porque erguer barricada na Avenida Delfim Moreira é um caso absolutamente excepcional. A polícia pode agir.
Mas se a mesma dona Maria, mora no Vidigal e liga para polícia dizendo que homens armados estão erguendo barricas no morro ela não será atendida. Porque erguer barricada nos morros não é um caso excepcional. Virou rotina. Ou seja, nos dois exemplos, a régua do “absolutamente excepcional” prejudica a dona Maria do morro, não do asfalto. E esse não é o espírito da decisão de Fachin. Precisa ser recalibrada.
Polícia Federal e Ministério Público Federal são parte do problemas, mas acabam esquecidos
As policiais Militar e Civil do Rio apontam que a limitação das operações policiais permitiu ao Comando Vermelho estocar armas e aumentar seu domínio territorial. Sem entrar no mérito se há relação de causa-efeito entre a decisão do Fachin e a expansão da facção, há um fato concreto a ser debatido: a quantidade de armas não mão dos bandidos. Esse ponto é inquestionável. O assunto, portanto, é da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, pois se trata de tráfico internacional de armas.
E ninguém pergunta à PF e ao MP Federal quais as medidas estão sendo tomadas para evitar o derrame de armas no estado do Rio. Pode ser até que tenham boas respostas (recentemente houve a prisão de uma quadrilha internacional de traficantes de armas) , mas o problema é a exclusão dessas instituições no debate sobre a tragédia fluminense de segurança.
É como se PF e Ministério Público Federal não fossem parte do problema. E são. Não podem ser alçados a condição de “ombudsman” das instituições estaduais. Tem quer questionados e cobrados tanto quando o Ministério Público estadual, a PM e a Polícia Civil.
Só PM cita jogo do bicho como facção criminosa. Polícia Civil e Ministério Público estadual omitem
O CNJ fez as mesma perguntas às três instituições: “quais são as Facções Criminosas e Seu Domínio Territorial e houve avanço ou não, após a ação no Supremo?”
Só a PM citou o jogo do bicho como facção criminosa. E com precisão: “Atualmente além do jogo do bicho, (a organização criminosa) explora bancas de apostas esportivas irregulares, bingos clandestinos, máquinas caça níquel, venda de cigarros contrabandeados, entre outras. Assim como os milicianos, a atuação dessa ORCRIM é mais discreta evitando a presença ostensiva de armas de fogo, evitando confrontos e buscando aliciar membros das forças de segurança pública. Apesar disso essa ORCRIM não se furta de mobilizar homens armados sempre que há a necessidade de executar algum desafeto.”
Ninguém imagina que a Polícia Civil e o Ministério Público estadual estejam acobertando o jogo do bicho. Não se trata disso. Mas não citar a o jogo do bicho num cenário de domínio de território e organização criminosa é inacreditável. Ainda mais porque a ex-chefe de Polícia Civil foi preso acusado de receber dinheiro do bicho e o Ministério Público estadual é apontando como , no mínimo, complacente com a não investigação de crimes que envolvem essa máfia.
Entrar numa comunidade para combater o monopólio de cigarros piratas explorados pelo jogo do bicho ou apreender caça níqueis é um situação excepcional? Ou seja, a discussão cabe no contexto dessa ação. O jogo do bicho é parte do problema. E que parte…
E a PM, cuja função principal não é a investigação, mas o policiamento ostensivo, parece construir o melhor cenário da insegurança fluminense. Investiga melhor, ao que parece. Mas é justamente a corporação que está no alvo desta ação, porque são seus homens que estão na linha frente. E muitas vezes, matando o filho de dona Maria que naquele dia só queria estudar.